Virei fã de Adam Curtis depois de assistir ao documentário de três partes All watched over by machines of loving grace. Preparava um material sobre um subgrupo transhumanista chamado Singularidade e estava justamente tentando entendê-los ligados à ideologia da Califórnia – como descrita por Richard Barbrook -, ao individualismo, ao neoliberalismo e a Ayn Rand. Vale do Silício, utopia tecnológica e poder. Pois que em All watched over… Curtis fez o mesmo e foi mais além, complementando a análise com uma história da cibernética e das ideias de estabilidade e ecossitema do movimento ambiental e da contracultura. E fez isso em vídeos politicamente instigantes, irônicos e com uma trilha sonora matadora.
Curtis trabalha para a BBC e dela usa seu imenso acervo de vídeos. No site da emissora britânica mantém um blog no mesmo estilo de seus filmes, procurando pensar nas relações entre poder, cultura, imagens, ficções e mídia. Quase um rascunho para os próximos documentários.
Um dos posts talvez possa ser conectado com a cibernética e nossas esperanças atuais na transparência.
O post leva o subtítulo Aprendendo a abraçar. E defende a ideia de que a demonstração de pública de sentimentos é algo aceito e valorizado apenas recentemente na história, em um processo que tem a mídia como um dos principais “educadores”. O choro, o abraço, a afetividade passam a ser tomados como sinônimo de verdade, de real exposição de um interior. Expor esse interior, mudar internamente, seria o primeiro passo para uma mudança externa.
O post começa com o video de uma atriz britânica em um programa do tipo “Está é sua vida”, nos anos 50. Ao ver as imagens de um colega recentemente morto ela começa a chorar. chora contidamente, pois ainda não seria socialmente aceito expor sentimentos em público. A câmera foge da atriz, que tenta se conter de toda forma. Percebe-se o constrangimento no estúdio. No dia seguinte, a reprecussão nos jornais é péssima, o público se choca com tanta exposição de intimidade.
Em seguida, o vídeo de um trabalhador inglês comum dos anos 70, um escriturário de classe baixa. Ele fala sobre sua vida e afirma sua infelicidade de maneira chocantemente fria. Não chora, não reclama, aceita a vida medíocre – casado, mas sem amor; num trabalho que não o satisfaz -, a falta de ambição, a inadequação, a solidão. Também não ri, não se trata de encarar as adversidades com alegria. É melancólico.
Então Curtis nos leva a perceber a virada. Num acampamento americano com cara de contracultura dos 60-70, mostra o trabalho de terapeutas que defendem justamente que, para uma mudança no mundo, no exterior, é preciso uma mudança interior, de contato profundo com os sentimentos. Em sessões de abraços coletivos, gritos guturais, as pessoas são ensinadas a exporem suas entranhas para assim conhecerem-se melhor. Ensinadas que essa franqueza é garantia de melhor comunicação e, assim, de melhor entendimento mútuo.
Mas há um porém. E se as pessoas não estiverem necessariamente colocando pra fora o que há dentro delas mas, ao invés disso, mesmo que inconscientemente, estiverem apenas agindo emocionalmente como se passou a esperar delas? E se houver fingimento?
Curtis vai explorando esse tipo de tensão. E afirma que agir emocionalmente, em especial em frente das câmeras, passou a ser algo incentivado pelos programas de tevê. A barreira do comedimento civilizado dos anos 50 foi vencida pelas lições dos psicólogos. A frieza nos modos tornou-se sinônimo de artificialidade e não de comportamento social mais aceito. Mesmo que essa emoção seja algo aprendido e incorporado inconscientemente (ou até mesmo racionalmente utilizado quando se percebe que as demonstrações emocionais são esperadas), ela teria passado a significar a verdade, pois aparentemente seria um romper de comportas emocionais incontroláveis.
Aqui a ponte a se fazer. Vejamos o que Philippe Breton nos fala sobre o homo communicans:
“O projeto utópico que se articula em torno da comunicação é ambicioso. Desenvolve-se em três níveis: uma sociedade ideal, uma outra definição antropológica do homem e uma promoção da comunicação como valor. Esses três níveis se concentram em torno do tema do homem novo, que chamaremos de Homo communicans.
Segundo Wiener, esse homem novo corresponde a nada menos do que a tentativa de recolher, com materiais marginais, os fragmentos que uma civilização derrotada havia espalhado em um grande maelström entrópico. O Homo communicans é um ser sem interior e sem corpo, que vive em uma sociedade sem segredo; um ser totalmente voltado para o social, que só existe através da troca e da informação, em uma sociedade tornada transparente graças às novas “máquinas de comunicação”. Essas qualidades de homem da comunicação, que contribuem para fomentar o ideal do homem moderno, surgem como alternativas à degradação do humano produzida pela tormenta do século XX.”
O que é o homem em contato direto com seus sentimentos senão o homem totalmente transparente? Ele está “voltado para o social” também porque está, como homem da cibernética, oferecendo um feedback constante para os outros, para o grupo, para o sistema. Ao se abrir, ao se comunicar profundamente, o mais sem mediação possível, tornaria possível a estabilidade no social (ou, em menor escala, numa relação em um casal ou em um grupo)
Há mais a se explorar aí, porque essa transparência tem algo de iluminista e, ao mesmo tempo, contra-iluminista. Iluminista pois significa, de alguma forma, retirar do homem o mascaramento do ensinado (em analogia à religião, que obscurece o homem). Aqui a natureza é entendida como a fonte da verdade, como lugar no qual se buscar a raiz, o dado bruto sem o filtro da elaboração da emoção. Mas também é contra-iluminista porque nega razão ao sujeito, rejeita a elaboração que ele mesmo faz do que sente como algo impuro, como barreira à comunicação mais direta.
Por que a transparência, hoje, ganhou esse status de ritual de purificação, de pré-requisito necesário para a demonstração de incorruptibilidade ou condição de verificação sobre a conduta. Bancos vendem ações de empresas que rotula como éticas pois essas fazem seu processo de accountability, sua abertura de contas. O primeiro passo para um governo se mostrar limpo e fazer suas ações de open data. Não que essas ações não sejam positivas, mas esse desvestir é significado por si só como sinal de honestidade. Como se não houvessem Enrons a maquiar números.
Ow, fazia tempo que não entrava aqui e curti o post. O Curtis é um cara realmente interessantíssimo e o blog dele é foda. Viu o post sobre os jovens e a música perto do fim da história da URSS e como eles estão participando da política agora? E o da cosmologia? E o do Murdoch? São realmente esboços de documentários, e com cada pérola que ele acha nos arquivos da BBC…
Dos docs, acho que o que eu mais gostei é o The Trap. Me deu vontade de assitir o restante dos docs dele aqui…
Sobre o seu post, mesmo, acho (achismo, mesmo) que a relação que vc pescou é legítima. O penúltimo parágrafo é sensacionalmente lúcido.
Me veio à cabeça, agora: a ambiguidade que você pescou aí (iluminismo, anti-iluminismo) tem algo a ver com a ambiguidade ocultismo/racionalismo que marcou a cultura burguesa circa Revolução Francesa. Toda a doideira em torno dos transes experimentados pelos indivíduos “mesmerizados” no final do 18 e no 19 desembocou na elaboração do conceito de inconsciente. O interessante é que o ocultismo a la Mesmer convivia nos salões revolucionários com a racionalidade iluminista e, no mesmo sentido, alguns “cientistas da mente”, insuspeitamente racionalistas, levaram o mesmerismo a sério no 19. A ciência do 19 ficou, por fim das contas, com uma parte do que o mesmerismo involuntariamente criou. E essa parte era: conhecer a nossa real natureza, ou nossa natureza oculta, mas verdadeira. (tudo isso a verificar, caso queira seguir a pista)
A ver, pode ter a ver, pode não ter.